Entrevista com Prof. Renato Ambrósio Jr, para Oftalmologia em Foco – Março 2022.
Os 20 anos do Pentacam® são uma celebração internacional. Conversaremos sobre este marco histórico do tomógrafo de córnea mais popular no mundo e que é também motivo de orgulho para a oftalmologia brasileira. Isto porque, o Brasil foi um dos primeiros países a usar e incorporar este na prática clínica. Adicionalmente, um dos investigadores que mais colaborou para o desenvolvimento das suas aplicações clínicas o software é o Prof. Renato Ambrósio Junior com quem realizamos uma entrevista exclusiva para o Oftalmologia em Foco.
A entrevista foi conduzida pelos oftalmologistas fellows em Córnea, Érica Ferreira Meneses, João Fonseca Filho, Amanda Luiza Pereira Souza e Eric Reiss, além da residente de oftalmologia do segundo ano da UNIRIO, Eduarda Resmini Polidorio.
Confira a matéria completa.
O que é o Pentacam®?
Dr. Renato: É um tomógrafo de córnea e segmento anterior que utiliza a fotografia de Scheimpflug rotacional para a reconstituição tridimensional tanto da córnea – com elevação anterior, elevação posterior e mapa paquimétrico – quanto do segmento anterior com avaliação da câmara anterior (CA) e do seu ângulo, além do cristalino. Como usamos a luz azul visível, não penetra em opacidades, não sendo possível ver atrás da íris. Também tem as limitações da reflexão interna da luz. Com isso, outras tecnologias também ganham relevância, como o ultrassom de alta frequência (UBM – Biomicroscopia Ultra-sônica), que permite estudo de estruturas posteriores a íris para medir o diâmetro sulco a sulco, por exemplo.
Qual é a importância do Pentacam e por quê é tão relevante hoje em dia?
Dr. Renato: O conceito é sempre evoluir. De fato, ir além sem descartar (em inglês, “beyond but not over”).
A Topografia com Disco de Plácido, por exemplo, permite identificar alterações compatíveis com ectasia em pacientes com ceratocone dito como leve ou subclínico (ou frustro) – com acuidade visual e exame à lâmpada de fenda relativamente normais.
A importância do Pentacam® em possibilitar “ir além sem descartar” pode ser notada inicialmente ao se perceber casos que desenvolveram ectasia pós-LASIK nos quais as topografias pré-operatórias estavam normais e não havia outro fator de risco identificável. A necessidade de ir além da topografia se mostra inquestionavelmente nesses casos. Os casos com ectasia altamente assimétrica também mostram esta questão. De fato, os casos de pacientes com ectasia assimétrica também servem como modelo para treinar e testar a sensibilidade para detectar casos de ectasia leve. Mas o objetivo com a avaliação mais avançada (enhanced screening) deve ser reconhecido como o de caracterizar a susceptibilidade para ocorrer a ectasia.
Com isso, no exame de pacientes candidatos para cirurgia refrativa, vamos além sem descartar a avaliação da superfície, bem como o diagnóstico de casos leves de ceratocone.
Como surgiu seu interesse nesta área e como foi a colaboração para o desenvolvimento e reconhecimento da tomografia?
Dr. Renato: Comecei a trabalhar com tomografia de córnea ainda na residência no Instituto de Oftalmologia Tadeu Cvintal, em 1998, quando o Orbscan® foi introduzido no Brasil. Com o Orbscan, a fenda faz uma translação horizontal. No Pentacam®, temos o escaneamento rotacional, que permite um ponto de coincidência que é a fixação do paciente. Entretanto, com o Orbscan® já tínhamos informações além da topografia de superfície. Nesta época, a reconstituição tridimensional já trazia o conceito de tomografia da córnea, que escutei inicialmente do Dr. Jack Holladay. No congresso da BRASCRS de 2000, no Rio de Janeiro, eu preparei uma apresentação com o título “Tomografia de Córnea: Uma nova abordagem Videoceratográfica”.
Entretanto, existiam limitações importantes do Orbscan. Por exemplo, após uma cirurgia de correção visual a laser, a córnea muda a sua transparência, o que influencia o bordo de detecção posterior. Dessa forma, a paquimetria fica mais delgada na medida e a elevação posterior parece mais elevada que o real. Considerando estes artefatos, houve muita resistência da parte de muitos investigadores, incluindo Prof. Steven Wilson, com quem fiz meu fellowship em Cirurgia Refrativa na Universidade de Washington em Seattle.
Pouco antes de ir para o fellowship, em julho de 2000, o Dr. Wilson publicou um editorial na revista Ophthalmology com o título “Cautions regarding measurements of the posterior corneal curvature”.¹ Entretanto, nesta fase, já percebia uma evolução nos métodos de imagem em Cirurgia Refrativa. Já no fellowship, tive a oportunidade de trabalhar numa revisão sobre Topografia e sua importância na era do Wavefront.² Neste artigo, foi citado um aparelho de tomografia que seria mais preciso que o Orbscan®, da empresa Oculus que tem sede perto de Seattle, em Woodenville no estado de Washington. Nesta fase, já estávamos nos referindo ao Pentacam®, mas ainda nem tinha este nome dado ao aparelho.
Quando retornei do fellow, no final de 2002, recebia casos de ectasia após LASIK para avaliação e segunda opinião. Enquanto muitos destes casos apresentavam topografia normal no pré operatório, percebi a necessidade de evoluirmos na propedêutica. Este sempre foi um tema importante.

figura 1
Nesta fase, eu revi meus estudos da residência no IOTC, com o projeto Orbcone (Figura 1) e tive a idéia de fazer um índice que representasse a distribuição da espessura da córnea, que se assemelhasse à asfericidade da superfície. Enquanto estava bastante entusiasmado com a hipótese de testar se a distribuição paquimétrica seria diferente em olhos normais e com ceratocone, nesta época, nenhuma clínica no Rio de Janeiro tinha Orbscan. Foi quando conheci melhor o Dr. Mario Ursulino de Aracaju durante um curso em Brasília organizado pelo Dr. Canrobert Oliveira: CASC (Curso Avançado de Seleção de Candidatos para Cirurgia Refrativa). Ao entender o conceito, o nosso saudoso amigo Mario Ursulino me disse que poderia fazer este estudo com seu primo que estava terminando a faculdade de medicina, Dr. Allan Luz.
O trabalho brilhante do Allan rendeu o prêmio do CBO em 2005, que foi publicado nos ABO.³ (Figura 2)

figura 2
Entretanto, ainda em 2003, eu conheci o Pentacam, por meio do Sr. Yoshiaki Hara que foi o representante comercial que trouxe o Pentacam para o Brasil. Percebi imediatamente os benefícios do Pentacam. Além disso, tive uma resposta bastante positiva dos diretores de pesquisa e desenvolvimento da Oculus, em especial os engenheiros Andreas Steinmüller (diretor do R&D da Oculus) e o Jörg Iwanczuk (gerente global de aplicação do Pentacam). Ambos concordaram em testar e desenvolver esta ideia.
Foi assim que a curva de progressão paquimétrica se iniciou. Com os resultados iniciais, percebemos rapidamente que esta seria uma grande possibilidade de diferenciar a tomografia e o Pentacam® em relação a topografia.

Figura 3
E o display Belin-Ambrósio, como ele foi concebido?

figura 4
Dr. Renato: O Dr. Michael Belin é um professor que na época era o presidente da Sociedade Internacional de Córnea (Cornea Society). Eu já tinha lido alguns artigos dele sobre elevação que explicam a questão dos mapas de elevação serem, na verdade, um mapas de subtração da superfície medida e a de referência.
Nos eventos internacionais da OCULUS, percebemos a congruência de nossas ideias, destacando-se a importância do estudo global da córnea, além da superfície. Quando estudamos o conceito de fazer uma da zona de exclusão para calcular a melhor referência para os mapas de elevação, percebemos que o ponto mais fino oferecia a melhor opção para esta centralização. Com isso, houve uma verdadeira harmonia dos conceitos de elevação de distribuição paquimétrica. Unir estas informações em um display foi uma sugestão natural e muito bem aceita.
A primeira versão do display foi elaborada em 2007. Posteriormente, incluímos os índices (“d”s) que representam o desvio da normalidade de diversos índices e o “D” final que era calculado por meio de análise de regressão linear. Em 2010, quando iniciamos a colaboração multidisciplinar para desenvolver melhor a inteligência artificial com os amigos de Alagoas, Dr. João Marcelo Lyra e Prof. Aydano Machado, pudemos melhorar a acurácia do “BAD-D”. Foi quando nasceu o grupo BrAIN – “Brazilian Artificial Intelligence” em córnea e cirurgia refrativa.
Entretanto, a ideia deve ser sempre ir além sem descartar!
O Dr. Bernardo Lopes, em sua brilhante tese de doutorado que tive o privilégio de orientar na UNIFESP, melhorou a capacidade de detectar ectasia com Pentacam com aperfeiçoamento da IA no PRFI (Pentacam Random Forest Index).4 Posteriormente incluímos os dados biomecânicos oriundos da imagem de Scheimpflug dinâmica do Corvis ST, com o TBI (Tomography and Biomechanical Index).5

figura 5
Em que a tomografia veio a acrescentar à topografia? E neste raciocínio, em que o estudo integrado à biomecânica se soma à tomografia?
Dr. Renato: A resposta a esta pergunta nos faz pensar. Devemos entender a inteligência artificial e aplicar na prática, mas também tem a inteligência anciã ou filosofia. Com isso, temos o algoritmo IA².
Sem dúvidas, a topografia da superfície mostra a doença ectásica subclínica. Em 2003, publicamos um artigo que revisou os achados de topografia e paquimetria central (ultrassom) para avaliação de candidatos à cirurgia refrativa.6 Cerca 1% das pessoas que queriam fazer a cirurgia apresentavam ceratocone, sendo que apenas metade destes casos poderiam ser detectado na biomicroscopia ou tinham perda de acuidade visual corrigida. Portanto a topografia é sensível e é inquestionável que ela é importante. Mas ela é suficiente?
De fato, é uma avaliação superficial.
A ideia é que temos que estar sempre evoluindo e o ditado que “time que está ganhando não se mexe” é equivocada. Se você quer continuar ganhando, precisa evoluir e se adaptar. O que é bom pode (e deve) se tornar melhor.
Meu impulso para continuar melhorando foi ver casos que evoluíram para uma ectasia pós-LASIK, que no pré-operatório apresentavam topografia normal, espessura de córnea normal e nenhum outro fator de risco como leito residual abaixo de 300 e PTA acima de 0,4. Esses casos realmente nos deixam conscientes da necessidade de uma propedêutica mais avançada. Acredito que poderemos sempre melhorar para oferecer mais segurança e eficácia em cirurgia refrativa.
Existe um grupo de pacientes muito especial com os quais conseguimos muitos avanços nos estudos que são os pacientes altamente assimétricos. Definimos um paciente altamente assimétrico quando um olho tem ectasia clínica e o outro olho se mostra normal em nível biomicroscópico, topográfico e, em alguns casos, até tomográficos. O consenso7 de 2015 estabelece que conceitualmente o ceratocone é uma doença bilateral, mas ectasia pode ser unilateral. Inclusive, ectasia pode acontecer em qualquer córnea. Esses casos altamente assimétricos (VAE – very asymmetric ectasia) podem servir para treinar e testar os métodos de inteligência artificial para integrar os dados tomográficos e biomecânicos, como fizemos no TBI. Ainda pudemos melhorar a acurácia recentemente com uma amostra mais abrangente. Entretanto, já reconhecemos os casos de VAE-NTTB (normal topography, tomography and biomechanics – o que mostra que devemos ir além da tomografia e da biomecânica.
O que podemos esperar além da avaliação integrada da tomografia com a biomecânica?
Dr. Renato: Acredito que a tomografia segmentar, que fazemos com o OCT (tomografia de coerência óptica) para avaliar o mapa epitelial pode ajudar. Além disso, a genética e a biologia molecular são os que vão, no conceito da propedêutica multimodal, contribuir cada vez mais.
A campanha internacional de conscientização do ceratocone, Violet June, informa que coçar os olhos faz mal. Esse entendimento vai beneficiar a todos, independentemente do nível de instrução e cultura. Porém, entender e reconhecer que o trauma contínuo pode agravar o ceratocone ou mesmo causar ectasia, pode representar uma importante evolução conceitual.
Como esta tecnologia pode ajudar na Universidade?
Dr. Renato: A universidade exerce um papel fundamental para a sociedade e fico contente e sempre motivado em estar colaborando. O papel da universidade vai desde a formação acadêmica e pesquisa, até o atendimento para a população. A tecnologia pode fazer diferença em todas estas questões do nosso trabalho.
Com isso, além de oferecer aos residentes e fellows experiência com a tecnologia de ponta, podemos ajudar os pacientes de forma mais adequada. Além disso, podemos estabelecer a pesquisa. Por exemplo, precisamos de um estudo epidemiológico para entender a prevalência de ceratocone na população.
Na campanha Junho Violeta de 2019 fizemos um dia de ceratocone em todo Brasil. No Rio de Janeiro, fizemos na Unirio e foram colocados aparelhos de exame em locais de fácil acesso em várias outras cidades. Ao se fazer exames nas pessoas que passavam pelo local, encontramos pessoas com ceratocone, sem doença e principalmente pessoas que não sabiam que tinham a doença ou uma córnea suscetível. Planejo na UNIRIO, que deve ser objeto da tese da Dra. Lorena Barros, um trabalho para realizar os exames de Pentacam® e Corvis ST® em todos os funcionários e acadêmicos que circulam no Hospital Universitário Gaffrée Guinle. Devemos fazer um questionário para identificar as pessoas que já realizaram alguma cirurgia na córnea ou que apresentam o diagnóstico. Dessa forma, poderemos avaliar o percentual de pessoas que apresentam alterações leves ou subclínicas.
Sabemos que a prevalência de ceratocone pode ser variável em diferentes locais do planeta, mas esta pode chegar a 5% como descrito pelo colega Emilio Torres no estudo realizado em crianças na Arábia Saudita.8
Com diagnóstico precoce, poderemos atuar de forma mais eficaz no tratamento, principalmente na prevenção da perda de visão e na morbidade causada pelo ceratocone para os pacientes e para a sociedade como um todo. Com isso, promoveremos um sistema de saúde mais eficaz.
Como vem sendo a evolução do Pentacam?
Dr. Renato: A evolução do Pentacam foi tanto em hardware quanto em software. O hardware passou de uma câmera de Scheimpflug de menor resolução para uma com mais resolução, que foi o Pentacam HR®. Depois veio o Pentacam AXL®, que mede o comprimento axial por PCI, interferometria de coerência parcial. Mais recentemente, temos o Pentacam AXL-Wave® que, além da tomografia e do comprimento axial, realiza o estudo das aberrações ópticas oculares pelo sistema de Hartmann Shack.
E se me perguntarem se ainda vai evoluir mais, minha resposta é, com certeza! Novamente, a ideia é de ir além sem descartar. Penso que a evolução será na direção de segmentação para avaliação do epitélio, da camada de Bowman e do complexo da membrana de Descemet e endotélio. Isso deve ser possível com a câmera de Scheimpflug de mais alta resolução ou integrando a tomografia de coerência óptica. Portanto, o futuro é extremamente promissor para o estudo multimodal com o Pentacam®.
No entanto, ressalto que a informação dos exames não é tão relevante sem a interpretação clínica adequada. Mesmo com IA, o trabalho do médico, pautado em conhecimento e zelo, deve ter seu papel sempre reconhecido. Acredito que ainda mais relevante!

Figura 6 – Foto Autores: João, Amanda, Erica e Eduarda
Referências
1. Wilson SE. Cautions regarding measurements of the posterior corneal curvature. Ophthalmology. 2000;107(7):1223. doi:10.1016/s0161-6420(00)00152-4
2. Wilson SE, Ambrosio R. Computerized corneal topography and its importance to wavefront technology. Cornea. 2001;20(5):441-454. doi:10.1097/00003226-200107000-00001
3. Luz A, Ursulio M, Castañeda D, Ambrósio R Jr. Progressão da espessura corneana do ponto mais fino em direção ao limbo: estudo de uma população normal e de portadores de ceratocone para criação de valores de referência [Corneal thickness progression from the thinnest point to the limbus: study based on a normal and a keratoconus population to create reference values]. Arq Bras Oftalmol. 2006;69(4):579-583. doi:10.1590/s0004-27492006000400023
4. Lopes BT, Ramos IC, Salomão MQ, et al. Enhanced Tomographic Assessment to Detect Corneal Ectasia Based on Artificial Intelligence. Am J Ophthalmol. 2018;195:223-232. doi:10.1016/j.ajo.2018.08.005
5. Ambrósio R Jr, Lopes BT, Faria-Correia F, et al. Integration of Scheimpflug-Based Corneal Tomography and Biomechanical Assessments for Enhancing Ectasia Detection. J Refract Surg. 2017;33(7):434-443. doi:10.3928/1081597X-20170426-02
6. Ambrósio R Jr, Klyce SD, Wilson SE. Corneal topographic and pachymetric screening of keratorefractive patients. J Refract Surg. 2003;19(1):24-29. doi:10.3928/1081-597X-20030101-05
7. Gomes JA, Tan D, Rapuano CJ, et al. Global consensus on keratoconus and ectatic diseases. Cornea. 2015;34(4):359-369. doi:10.1097/ICO.0000000000000408
8. Torres Netto EA, Al-Otaibi WM, Hafezi NL, et al. Prevalence of keratoconus in paediatric patients in Riyadh, Saudi Arabia. Br J Ophthalmol. 2018;102(10):1436-1441. doi:10.1136/bjophthalmol-2017-311391
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